Jaime Ribeiro
Após ter lido o livro “O Sobrinho do Mago” um clássico do escritor inglês C. S. Lewis, quando tinha 11 anos de idade, posso dizer que me transformei no que hoje chamam de nerd. Andava com um livro embaixo do braço sempre que ia para qualquer lugar. Eu falava de Digory e Polly, protagonistas daquele fabuloso livro, como se fossem amigos reais, que viajaram para outra terra – o que era suficiente para os outros me acharem um menino estranho.
Até hoje, consigo lembrar muito bem de quando eu dormia tarde da noite, escondido da minha mãe, para ler o livro “Tonico e Carniça”, de José Resende Filho, que faz parte de uma coleção infantojuvenil muito popular nos anos 1980. Adorava acompanhar as aventuras e fantasias daqueles dois adolescentes, recém-saídos da infância, que enfrentavam a dura realidade de trabalhar para sustentar a própria família.
A história de Carniça me sensibilizou especialmente. Por se tratar de um menino que vivia em situação de rua e que trabalhava desde os seis anos de idade, ele precisava se provar o tempo todo para uma sociedade que impunha todo tipo de violência contra as crianças que viviam naquela realidade.
Infelizmente, mais de trinta anos após a história de Resende ter sido escrita, essa continua sendo a realidade de muitas crianças brasileiras. Milhares de menores de idade ainda vivem o desafio de se equilibrar sobre o fio tênue que separa a infância despreocupada da maturidade cheia de responsabilidades e dúvidas.
Quando cheguei ao final angustiante do último livro da série, comecei a chorar. O choro não era alto, mas foi o suficiente para chamar a atenção da minha mãe, que estava no quarto ao lado. Ela veio depressa saber por que eu estava triste. Chegando à minha cama, ela viu o livro na minha mão, fez um carinho na minha cabeça e me disse: “Está tudo bem! O Carniça é forte e já sobreviveu a muitos golpes nas ruas. Ele também vai escapar dessa, filho”.
Que bom que ela não disse algo como: “Pare de chorar”, “Deixe de ser bobo”, “É apenas um livro”. Ou ainda pior: “Menino não chora! Pare com isso!”. Minha mãe é uma educadora experiente. Apenas mais tarde, já adulto, compreendi que ela sabia que eu estava vivenciando emoções importantes.
Percebi que ela entendia que o fato de eu me emocionar tanto com uma história, não importando se era ficção ou vida real, era um indicador de que eu estava me tornando uma criança empática. Um dia, quando já era adolescente, participei de uma roda literária na escola, que tinha por tema contar uma história engraçada da infância. Quando chegou a minha vez, contei que chorei lendo um livro quando tinha dez anos de idade. Narrei a história fazendo caras e bocas, zombando da criança que eu fui um dia. O professor que estava mediando a discussão olhou nos meus olhos e falou de forma firme, mas amorosa: “Essa história não é nada engraçada ou boba, você foi apenas um ser humano legítimo. Todos nós deveríamos sentir a dor dos outros”.
A leitura é capaz de transformar o coração humano e amadurecer as nossas habilidades emocionais. Os livros têm o poder de levar as crianças a experimentar diversas realidades, em uma velocidade que não alcançariam em tão pouco tempo de vida. Ao se engajar em histórias de outras pessoas, as crianças podem desenvolver a empatia e aprender a conviver melhor em sociedade. Quando vivenciamos a vida de outras pessoas, por meio da leitura, podemos nos imaginar em sua posição. Isso nos permite compreendê-las melhor e cooperar com elas de uma forma mais efetiva.
O livro The moral laboratory 22, escrito pelo pesquisador holandês Jèmeljan Hakemulder, ainda inédito no Brasil, descreve vários resultados de experimentos que ligam a leitura à melhoria das habilidades sociais nas crianças e adolescentes. Eu tive a oportunidade de aprender essa lição na prática, quando uma professora e amiga do Rio de Janeiro me procurou para conversar sobre um problema de bullying que estava acontecendo em sua escola, uma conceituada instituição onde estudavam crianças da classe média alta carioca.
Os alunos da escola descobriram que um dos colegas do sexto ano era um menino que já tinha vivido em situação de rua e fora posteriormente adotado. A informação foi suficiente para espalhar diversas histórias pelos corredores e pelas redes sociais dos alunos, promovendo preconceitos de toda ordem contra a criança. Um desses boatos de mau gosto dizia que todos deveriam levar suas bolsas para o pátio na hora do recreio, para que o garoto não furtasse os pertences dos colegas.
A professora já tinha usado todas as técnicas que aprendera ao longo de sua vivência pedagógica, incluindo duras lições sobre preconceito e diversidade, tentando sensibilizar a sala e mudar o cenário, mas nada pareceu funcionar.
Ela estava preocupada porque o garoto adoecera no dia anterior à nossa conversa. Rafael ficaria afastado por duas semanas, quem sabe até nem voltaria mais para a mesma escola por conta do bullying.
Naquele momento, eu tive uma inspiração: lembrei-me da leitura emocionante da minha infância. Aquele livro que tinha mudado minha perspectiva sobre esse assunto, quando eu ainda estava com pouco mais de dez anos de idade, também poderia funcionar para sensibilizar aquelas crianças.
“Eu tenho um conselho, mas você tem um pouco mais que uma semana para executá-lo”, falei entusiasmado para a professora.
“Passe a leitura do livro “Tonico e Carniça” para toda a turma e marque um bate-papo com os alunos, para que compartilhem suas impressões sobre a história. É muito importante que na atividade vocês não se esqueçam de usar a técnica de inversão de papéis, estimulando as crianças a se sentirem no lugar das personagens do livro. É essencial que vocês façam tudo antes de Rafael retornar, completei. No mesmo dia a minha amiga ligou para a editora, comprou os livros e mandou entregar para todas as crianças da turma de Rafael.
Duas semanas depois ela me ligou, dizendo que tivera uma das experiências mais emocionantes de sua vida enquanto educadora. Em seguida, convidou-me para visitar a escola e verificar, com os meus próprios olhos, o que tinha acontecido. Passados alguns dias, fui à escola dela. Deparei-me com várias crianças colando bilhetes coloridos em um mural que ficava no final do corredor, em uma área comum onde elas se reuniam na hora do recreio. Era quase uma centena de bilhetes, nos quais os alunos elogiavam um colega por algo especial que tinha sido feito ao longo das últimas semanas. Um painel de reconhecimento e afeto.
Imediatamente, aquilo tudo me pareceu encantador. Eu queria ler todos os bilhetes e não sabia nem por qual começar. No momento em que eu tentava me concentrar, algo me saltou aos olhos. Percebi que quase um terço dos bilhetes do mural colorido era endereçado para uma criança chamada Rafael. Não me passou pela cabeça de imediato que se tratava do mesmo garoto de quem tínhamos falado semanas antes. Eram bilhetes de boas-vindas e tantos outros contando coisas boas que ele tinha feito ao longo do ano para os seus colegas de turma.
Vendo-me paralisado diante daquele painel de amor, a minha amiga sorriu de longe e disse: “Eu não preciso lhe falar mais nada, né? Só quero lhe dizer muito obrigada!”.
Eu apenas sorri de volta para ela e disse que não estava entendendo muito bem o que estava acontecendo ali.
“Deixe que eu lhe conto tudo em detalhes”, falou a professora toda animada.
Contou-me que após a reunião de comentários sobre a leitura do livro indicado, muitas crianças se emocionaram. Choraram quando fizeram a atividade de inverter papéis com as crianças em situação de rua, sentindo os dramas sofridos por elas para garantir a sobrevivência. Logo após a resenha do livro, uma menina fez um bilhete para Rafael agradecendo-o, porque no dia que faltara à aula, o colega tinha guardado para ela o brinde que foi dado para cada aluno presente na sala. Assistindo àquela homenagem, um menino lembrou-se do dia em que caiu, quando estava jogando futebol. Foi Rafael quem deu a mão para que ele se levantasse, enquanto todos os outros garotos riam da sua queda. Em seguida, todas as crianças se estimularam a fazer o mesmo e escreveram bilhetes para Rafael. Transformaram aquele mural em um grande memorial de homenagens ao amigo que estava afastado temporariamente das aulas.
No dia em que Rafael voltou para a escola, cabisbaixo, sem saber qual seria a nova agressão moral que sofreria, surpreendeu-se quando se deparou com o painel colorido, todo preenchido com bilhetes legais endereçados ao seu nome. Na sala de aula, as crianças da turma esperavam animadas pelo seu retorno. Demonstraram isso com calorosos abraços, assim que ele passou pela porta. Após o exercício da leitura, as crianças do sexto ano passaram a ser intolerantes ao bullying, ajudando a escola a cultivar a empatia como referência comportamental entre os alunos.
Apenas um livro nas mãos das crianças de uma escola foi capaz de trazer nova possibilidade de convivência e uma prática educacional transformadora.
Eu sei que não é tão simples como parece a tarefa de colocar as crianças de hoje para ler e, com isso, formar como que por mágica crianças bem-sucedidas e empáticas. Muito pelo contrário, no mundo digital de hoje, em que todas as crianças estão cheias de atividades, isso parece se tornar uma tarefa bem difícil para os pais e educadores.
Em um país como o Brasil, onde 44% da população não lê e 30% nunca comprou um livro, torna-se ainda mais desafiador fazer com que os livros cheguem às mãos das crianças. Ainda mais porque elas preferem fazer outras coisas, como assistir a programas e vídeos no YouTube, usar redes sociais e conversar por meio de aplicativos de mensagens. As formas de entretenimento estão mudando para as novas gerações. A tendência é que quanto mais as opções de ocupações digitais forem surgindo, mais o interesse pela leitura de livros tradicionais irá diminuir.
Cabe a nós, leitores e embaixadores da transformação do mundo pela empatia, liderarmos os movimentos para manter, ou até mesmo incrementar a leitura, como parte integrante da rotina das crianças. Ainda que saibamos que existe concorrência das opções digitais e das múltiplas ocupações que nós mesmos adultos inventamos para as crianças, precisamos motivá-las a ler.
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