Barulhentas, inquietas, arteiras, faladeiras, distraídas, bagunceiras, impacientes. Quem nunca chegou a algum lugar com um monte de crianças brincando e não se deparou exatamente com um cenário onde todas essas características estavam presentes? Mas como saber se tais atitudes estão dentro da normalidade ou não? Como identificar se a criança é arteira mesmo ou se apresenta um quadro de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)? Existe diferença entre uma e outra?
Esse dilema – para não dizer polêmica – tem tirado o sono de muitos pais, mães e educadores e dividido a opinião de profissionais da saúde, como médicos e psicólogos. Todo esse burburinho se dá, principalmente, por duas razões. A primeira está relacionada ao diagnóstico. Alguns alegam que os diagnósticos estão sendo feitos de maneira indiscriminada e até que a TDAH é uma doença inventada. Outros afirmam que o transtorno sempre existiu e que mudou de nome ao longo da história, graças aos avanços da ciência, e que o aumento dos diagnósticos se deve ao fato de ter aumentado o acesso da população ao sistema de saúde.
O outro ponto que incita debates é o tratamento, geralmente baseado no uso de metilfenidato, substância química estimulante, mais conhecida no Brasil como Ritalina, produzida pela Novartis; ou Concerta, da Janssen-Cilag. Alguns profissionais dizem que o tratamento é eficaz, enquanto outros afirmam que suas reações adversas são perigosas demais.
Transtorno ou excesso de energia?
De acordo com a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (Abda), o TDAH é um transtorno neurobiológico, com grande participação genética – ou seja, há a possibilidade de ser herdado –, que tem início na infância e pode persistir na vida adulta, comprometendo o funcionamento da pessoa em vários setores. Caracteriza-se por três grupos de alterações: hiperatividade, impulsividade e desatenção.
“Existe muita especulação a respeito do uso do remédio ou o fato de ser uma doença inventada. O primeiro caso foi diagnosticado em 1845 e publicado em 1902. A Ritalina é da década de 1950. Ou seja, inventaram uma doença para depois de 100 anos comercializarem o remédio? Para mim é muita especulação. Claro que os laboratórios desenvolvem medicamentos e querem vendê-los, mas relacionar uma coisa à outra para mim não tem nada a ver”, diz o psiquiatra dr. Ênio Roberto de Andrade, coordenador do Ambulatório de TDAH do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
A publicação TDAH - Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade: Uma conversa com educadores explica que o diagnóstico da doença deve ser feito por médicos com ou sem o auxílio de uma equipe multidisciplinar, que pode ser composta por neuropsicólogo, psicólogo, psicopedagogo e/ou fonoaudiólogo.
Segundo Andrade, o principal fator para qualquer diagnóstico num quadro psiquiátrico é o prejuízo causado à pessoa. Se a criança é arteira, inquieta ou falante demais, mas não tem seu desempenho escolar e seu relacionamento social afetados, não é motivo para se diagnosticar como TDAH. Geralmente, os sintomas aparecem até os 12 anos de idade, e após essa fase é necessário que os pais observem outras possibilidades, como o uso de drogas e outros transtornos.
“São pessoas com dificuldade de manter a atenção e ficar quietas. Na sala de aula, por exemplo, se distraem com qualquer acontecimento, com qualquer tipo de barulho.
É comum os pais dizerem que os filhos são hiperatentos, prestam muita atenção. Mas podem prestar atenção e não filtrar o que captam, fixam-se onde não deveriam. A inquietação também é uma característica, não conseguem ficar sentados, falam muito, se mexem demais, além da impulsividade”, explica o psiquiatra.
Para diagnosticar o TDAH, o médico realiza a avaliação clínica e a observação da criança, coleta informações com os pais, analisa o comportamento, a sociabilidade e o aprendizado na escola; e utiliza escalas que mensuram a presença e a gravidade dos sintomas. Depois, avalia se o paciente preenche os critérios de diagnósticos para a doença. O TDAH consta do Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana (DSM-V) e do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (CID-10).
“A importância do papel do profissional no diagnóstico é justamente para identificar se a criança tem ou não a doença. Pode não ser TDAH, apenas uma maneira de a criança chamar atenção para si, aí o profissional precisará ter competência para identificar casos e casos”, diz Andrade. “Mas não é uma doença alarmante, pois é totalmente tratável. O medicamento já faz efeito após 30 minutos de ingerido, causando uma melhora significativa. Essa é a parte boa. Mas todo medicamento tem efeitos colaterais, e num erro de diagnóstico o paciente não sentirá os benefícios da medicação”, alerta o dr. Andrade.
Segundo dados de 2010, do Instituto de Defesa de Usuários de Medicamentos (Idum), houve um aumento na venda de medicamentos com metilfenidato de 71 mil para 2 milhões de caixas, entre 2000 e 2010. Atualmente, o Brasil é o segundo maior consumidor mundial dessa droga, atrás apenas dos Estados Unidos.
Apesar do aumento do uso do remédio, estatisticamente o tratamento ainda está muito abaixo do ideal, de acordo com dr. Ênio Roberto de Andrade, pois se estima que perto de 5% da população tenha TDAH, mas somente 1% esteja em tratamento.
“O aumento do uso do metilfenidato é verdadeiro, é um dado oficial da Anvisa. O número parece assustador porque parte de uma base relativamente pequena de uso anterior. Antes, eram poucos os diagnósticos e, consequentemente, mais raro o uso do remédio. Hoje, os especialistas estão mais alertas, identificam melhor os casos, que sempre existiram. Mas também tem a questão de ser a doença da moda, o que pode levar a muitos diagnósticos equivocados”, afirma Andrade.
Obedecer ou contestar?
A resistência ao uso do metilfenidato baseia-se na possibilidade de a substância causar dependência em seus usuários e reações adversas no sistema nervoso central, como convulsões, alucinações, ansiedade, surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações. Algumas pesquisas relacionam-no a casos de suicídio.
“É comum ver crianças em estado de verdadeiros zumbis, por isso é denominado de ‘droga da obediência’. Porém, é justamente pela desobediência que se questionam os padrões e o mundo em que a gente vive. Se não tivesse havido pessoas que ousaram desobedecer, estaríamos na Idade Média ainda. As mulheres continuariam submissas aos homens, negros seriam escravos, homossexuais seriam apedrejados e a sociedade não avançaria”, diz o psicólogo Luis Fernando de Oliveira Saraiva, conselheiro do CRP-SP.
Os profissionais que contestam o aumento dos diagnósticos de TDAH e, paralelamente, o uso do metilfenidato também apoiam suas argumentações nas características do mundo atual e nos padrões impostos pela sociedade. A sociedade muda. Com ela, a lógica do mercado de trabalho e, consequentemente, o perfil do trabalhador. Em um mundo globalizado, a conectividade é primordial para não se perderem oportunidades. Espera-se que as pessoas consigam manter atenção múltipla, tenham raciocínio rápido, atuem em diversas áreas, façam muitas coisas ao mesmo tempo, estejam sempre “on-line”, e até a agressividade é bem-vista nas questões comerciais e mercadológicas.
Segundo alguns autores, esse comportamento esperado nos adultos acaba também se refletindo precocemente nas crianças, que assumem, muitas vezes, agendas de miniadultos. Da mesma forma, os comportamentos não aceitos socialmente, os baixos rendimentos escolares e as conquistas desenvolvimentais fora do tempo esperado são analisados muitas vezes fora dos contextos social, político, histórico e relacional, e passam a ser considerados doenças passíveis de tratamento.
“Medicalização é um processo que toma questões sociais e coletivas num âmbito individual e biológico, reduzindo fenômenos da vida, do mundo, a uma coisa individual baseada no corpo biológico. Acontece quando um número crescente de comportamentos, que na psicologia entendemos como parte do desenvolvimento normal e saudável das pessoas, passa a ser entendido por uma lógica de doença”, explica Saraiva.
A aprendizagem e os modos de ser e agir, que englobam muita complexidade e diversidade, têm sido alvo da medicalização. Ou seja, crianças que são mais agitadas, que aprendem em outra velocidade, que se comportam de uma maneira diferente da qual é esperada, são entendidas como doentes. Em vez de se buscar maneiras diferenciadas para lidar com essa população, novas abordagens em sala de aula, utiliza-se a medicação, que teria o objetivo de melhorar a concentração, diminuir o cansaço e acumular mais informação em menos tempo.
Desde 2011, o Conselho Federal de Psicologia tem realizado diversas ações para contestar o uso indiscriminado de remédios na escola e, em julho de 2012, lançou a campanha Não à Medicalização da Vida, com um slogan que vai de encontro ao TDAH: “Se você acha que seu filho é muito arteiro, fique calmo. Ele está apenas sendo criança”.
Segundo o conselheiro do CRP-SP, não há consenso científico de que dislexia, hiperatividade ou transtornos do déficit de atenção sejam doenças relatadas há mais de um século. Saraiva afirma, ainda, que as doenças são inventadas e definidas em determinados momentos históricos a partir de padrões da sociedade da época. Quando o indivíduo não atinge tal padrão, alega-se que é um problema dele, e não do padrão estabelecido.
“Não sei se o padrão da escola beneficia todos os alunos ou a maioria deles, porque atender todos esses padrões é custoso para todo mundo. Com esse diferente jeito de aprender, em outro ritmo e em outra velocidade, essas crianças colocam em questão o motivo pelo qual a escola continua funcionando da mesma maneira e para que esses padrões permanecem”, conceitua Saraiva.
Para o psicólogo, o uso de qualquer terapêutica deve vir no momento em que o paciente se depara com uma situação de paralisia, onde não há possibilidade de a pessoa lidar minimamente com a situação. Quando a hiperatividade começa a ser considerada como uma doença crônica, geram-se limites para o trabalho com tais indivíduos, deixando-os aquém de seus potenciais.
“O diagnóstico fixa, cristaliza, categoriza, cria estereótipos e não ajuda pais ou professores, pois impede de se entrar em contato com a pessoa real. Se eu não puder olhar para quem ele é, perco de vista tudo o que ele pode ser, todos os seus potenciais”, finaliza o psicólogo Luis Fernando de Oliveira Saraiva.
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